Opi denuncia: em meio à pandemia de COVID-19, Funai põe em curso processo de desmonte do trabalho com índios isolados no Mato Grosso

Foto em destaque: Base permanente da Funai na Terra Indígena Kawahiva do Rio Pardo, em Colniza — Foto: Vinícius Mendonça/Ibama

Publicado por POVOSISOLADOS.
Disponível em: Link. Acesso em 05/05/2020.

Em meio à grave crise de saúde, econômica e política que assola o Brasil, o Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (Opi) vem a público repudiar a Portaria nº 555/PRES da Funai, publicada ontem (04/05) no Diário Oficial da União, a qual exonera o servidor Marco Antônio Fagundes de Paula Oliveira e nomeia Francisco das Chagas Lopes da Rocha para exercer o cargo em comissão de Chefe de Serviço da Frente de Proteção Etnoambiental Madeirinha-Juruena (FPEMJ), no estado do Mato Grosso. Este ato administrativo, tramitado sem qualquer diálogo ou justificativa plausível em meio a uma crise humanitária, embora possa parecer uma ação isolada e desprovida de maior relevância, faz parte de um processo sórdido e orquestrado de desmonte da política pública de proteção de povos indígenas isolados e de recente contato do Estado Brasileiro, construída à duras penas por indigenistas e indígenas ao longo dos últimos 33 anos.

Tal processo de desmonte teve início em outubro de 2019, com a exoneração de um experiente indigenista do quadro da Fundação e a recente nomeação, em fevereiro de 2020, de um experiente missionário evangélico fundamentalista ligado à Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB) para exercer o cargo de Coordenador da Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC/FUNAI)[1]. Pouco mais de um mês após a nomeação do referido missionário e em meio as ações de contingência por causa da pandemia no país, é editada a Portaria 419/PRES da Funai, a qual retirava da CGIIRC a prerrogativa de decidir sobre contatos com grupos indígenas isolados e a passava para as Coordenações Regionais, afrontando o próprio regimento interno do órgão. Após forte rejeição por parte da sociedade e das organizações de defesa de direitos indígenas, a Funai recua[2].

Novo golpe baixo contra os Povos e as Terras Indígenas no Brasil foi dado no dia 16 de abril deste ano, com a publicação da Instrução Normativa nº 09 da Funai, que “Disciplina o requerimento, análise e emissão da Declaração de Reconhecimento de Limites em relação a imóveis privados”. Sabemos que, na prática, essa Instrução Normativa, contrariando o Artigo 231 da Constituição Federal, objetiva transformar a Funai em um cartório de legalização da grilagem, invasão e esbulho de todas as Terras Indígenas não homologadas, numa clara inversão da atribuição regimental do órgão indigenista, qual seja, a regularização e proteção desses territórios. No caso específico das áreas ocupadas por povos isolados, tal ato normativo dessa “Nova Funai” é essencialmente genocida, considerando que existem investigações acerca de pelo menos 86 grupos isolados no Brasil e que muitos destes grupos ocupam territórios ainda não reconhecidos pelo Estado Brasileiro. A história recente do Brasil é tragicamente repleta de situações em que a omissão proposital do Estado em reconhecer, regularizar e proteger terras ocupadas por povos isolados acabou viabilizando o avanço da colonização sobre esses territórios ancestrais, e consequentemente, o extermínio de tais grupos. Citamos, como exemplo, os trágicos exemplos vivos dos Akuntsu, Kanoê e Tanaru em Rondônia, outrora numerosos e hoje reduzidos, respectivamente, a grupos de apenas 3, 3 e 1 remanescentes respectivamente.

A FPE Madeirinha-Juruena é responsável pelo trabalho de campo de localização de 13 registros de grupos indígenas isolados e pela proteção de duas Terras Indígenas ocupadas por um grupo de indígenas isolados e por outro em início de contato, no noroeste do Estado do Mato Grosso, a saber: Terra Indígena Piripikura e Terra Indígena Kawahiwa do Rio Pardo. Ambas são ocupadas por povos de língua Tupi-Kawahiwa, cuja existência foi confirmada por meio de extenso trabalho de campo da FPEMJ. Ainda assim, nenhuma das duas TIs encontra–se homologada[3]. A região está situada no chamado arco do desmatamento, sendo uma das regiões mais violentas do Brasil. Provas concretas dessa violência contra os povos isolados e contra os servidores da Funai que os protegem são a invasão da Base de Proteção Etnoambiental da Funai na Terra Indígena Kawahiwa do Rio Pardo, na noite do dia 10 de outubro de 2018, e as constantes ameaças de morte recebidas pelo Coordenador da FPE Madeirinha-Juruena.

Diante de tais fatos, em fevereiro de 2019, a Justiça Federal em Juína-MT concedeu liminar na Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal, determinando a presença da Polícia Militar na Base da Funai na TI Kawahiva, para proporcionar segurança para os servidores do órgão e para os grupos isolados. No último dia 26 de março, o juiz Frederico Martins deu a decisão final que condenou a União, a Funai e o estado do Mato Grosso a formarem uma Força-Tarefa para elaborar e implementar uma política conjunta e efetiva de segurança de forma permanente na Base Kawahiva. Foi determinado o prazo de 30 dias para início das reuniões que, em tese, resultariam na assinatura de um termo de cooperação entre os entes. O prazo, no entanto, se esvaiu, sem que tenha realizada qualquer reunião, tampouco assinado o termo de cooperação. As informações recebidas pelo Opi dão conta de que a Polícia Militar, desde a semana passada, abandou a Base da Funai, expondo gravemente a integridade física da equipe da FPEMJ e dos indígenas isolados.

O Opi lamenta e considera temerário que o novo chefe de serviço da FPE Madeirinha-Juruena, Francisco das Chagas Lopes da Rocha, não tenha experiência com a política pública de proteção de povos isolados e tampouco com as especificidades do trabalho de proteção etnoambiental em campo. Em resumo, longe de ser um ato isolado, esse processo de desmonte iniciado na FPE Madeirinha-Juruena é mais um passo do amplo movimento de investidas recentes contra os direitos constitucionais dos povos indígenas e constitui evidências claras do modus operandi da aliança entre missões evangélicas fundamentalistas e setores ruralistas com o claro objetivo de extermínio dos povos indígenas isolados e de recente contato no Brasil.

[1] https://oglobo.globo.com/brasil/coordenador-de-indios-isolados-da-funai-omite-atuacao-em-projeto-missionario-de-evangelizacao-24385866

[2] http://www.mpf.mp.br/df/sala-de-imprensa/noticias-df/covid-19-6ccr-envia-recomendacao-a-funai-para-garantir-protecao-de-indios-isolados

https://g1.globo.com/politica/blog/matheus-leitao/post/2020/03/19/conselho-recomenda-revogacao-de-portaria-da-funai-que-abre-brecha-para-contato-a-indios-isolados.ghtml

[3] https://povosisolados.com/2016/04/23/reconhecimento-do-territorio-kawahiva-isolados-no-noroeste-do-mato-grosso-avanca-com-publicacao-da-portaria-do-ministerio-da-justica/ http://www.funai.gov.br/index.php/comunicacao/noticias/5158-funai-apresenta-avancos-na-protecao-dos-indios-isolados-da-ti-kawahiva-do-rio-pardo

Foto em destaque: Base permanente da Funai na Terra Indígena Kawahiva do Rio Pardo, em Colniza — Foto: Vinícius Mendonça/Ibama

Fonte: Observatório dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato – Opi

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