POVO KULINA
Nós, povo Kulina Pano, somos o resultado da união entre os Kulina da família do Mawi, do igarapé São Salvador, e os Kulina da família do Kapishtana, do igarapé Pedro Lopes.
Os não-indígenas nos deram o nome de Kulina Pano para nos diferenciar de outros povos, mas nossos antepassados se reconheciam como pessoas usando o termo matsés, que em nossa língua significa “pessoa”.

Localização:
Rio médio Curuçá e médio Javari.
População: 300 pessoas (SIASI/SESAI, 2022).
Idioma:Kulina, ramo setentrional da família linguística Pano.

Lideranças
Maspa Kulina, Paulo Kulina, Paulo Kulina, Mapará Luiz Kulina, Artemio (Cacau), Erick, André Kulina, Sérgio Kulina, Francinildo Puatawi, Raimundo Kulina, Walcley Xawa, Luiz Xhistusioh, Paixão Kulina, João Kulina (Bruto), Pedro Kulina, Marli, Joseney, e Pedro

4 aldeias
Pedro Lopes, Nuntewa e Bela Vista e Bukua.

Antigamente, os Kulina do igarapé São Salvador usavam cabelos compridos, raspados no meio da cabeça, adornos de caramujo nas orelhas e perfurações no nariz e na boca. Usavam também penas de arara, mutum, gavião e tucano para ficarem bonitos. Já os Kulina do igarapé Pedro Lopes não usavam tatuagens faciais, mas também tinham cabelos longos com franjas.
Nosso povo enfrentou um período longo e doloroso de violências. Durante a década de 1960, fomos massacrados pelo povo Mayuruna, que invadiu nosso território, matando nossos homens e raptando cerca de 800 de nossas mulheres, levando-as para suas aldeias. Após essa tragédia, restaram apenas três famílias Kulina, que se dividiram para sobreviver: duas se refugiaram no mato, enquanto uma família foi para a beira do rio, estabelecendo contato com madeireiros que exploravam a região.
Por causa dessa violência, parte de nós escolheu se isolar para se proteger. Vivemos em isolamento durante anos, até que o Centro de Trabalho Indigenista (CTI) foi o primeiro a se aproximar de nosso povo em 2016. Essa aproximação aconteceu depois de décadas de abandono por parte do Estado brasileiro, que nunca nos garantiu saúde, educação ou condições mínimas para uma vida digna. A falta de políticas públicas e o tamanho reduzido de nossa população nos tornavam mais vulneráveis e dificultavam nossa luta por direitos, especialmente porque raramente vínhamos à cidade e não tínhamos voz frente ao Estado.
O grande cacique Artemio Kulina, conhecido como Cacau Kulina, foi uma liderança incansável que lutou por nosso povo. Ele dizia que, quando éramos “bravos”, os não-indígenas nos atacavam.
Mesmo enfrentando o descaso das instituições, que frequentemente engavetavam nossos documentos e demandas, Cacau nunca desistiu de lutar. Entregava pedidos à SESAI, à FUNAI e à prefeitura, na tentativa de garantir saúde, educação e proteção para nós, mas raramente era ouvido.

Por muitos anos, não tínhamos aldeia própria e vivíamos na terra dos não-indígenas.
No entanto, percebemos a importância de retornar ao nosso território e voltamos para a aldeia Pedro Lopes.
Quando alguém de nosso povo morria, mudávamos de lugar, mas mantínhamos o nome Pedro Lopes como forma de preservar nossa memória e nossa ligação com o território.
Ficamos no local por treze anos, até o falecimento de uma de nossas lideranças, quando decidimos que não era mais necessário mudar de local.
Nosso povo decidiu ocupar outras áreas de nosso território para se proteger e retomar nossa autonomia.
A aldeia Nuntewa foi estabelecida por uma de nossas lideranças ao perceber a invasão de pescadores e outros invasores. Raimundo Kulina decidiu retornar à aldeia Bela Vista, onde viveram nossos antepassados. O avô Pedro Kulina, em diálogo com Artemio, decidiu que também deveríamos voltar a viver em Bukua, mesmo com a presença ainda dos Mayuruna. Assim, hoje ocupamos quatro aldeias: Pedro Lopes, Nuntewa, Bukuak e Bela Vista.
A luta pela sobrevivência nos tornou resilientes. Foi somente em 2016 que começamos a ter acesso aos serviços de saúde, resultado da mobilização de nossas lideranças e da criação da nossa associação, AIKUVAJA.
Nos anos seguintes, conquistamos espaço na cidade, avançando lentamente na garantia de nossos direitos. Ainda assim, continuamos enfrentando desafios.
Muitas vezes, somos invisibilizados, tanto pelos não-indígenas quanto pelos próprios parentes de outros povos, que, por vezes, ignoram nossas necessidades.
Apesar das dificuldades, mantemos nossas tradições vivas. Continuamos a viver em nossas malocas, realizamos nossas festas e preservamos nossa língua e cultura.
Nosso pajé, Cacau Kulina, profetizou que, em trinta anos, muitos dos nossos parentes poderiam estar vivendo na cidade, mas que os Kulina continuariam no território. Hoje, nos esforçamos para manter essa previsão viva, garantindo que nossa cultura resista e que nossa voz seja sempre ouvida.
Por causa deste período recente de secas mais severas, a situação em nossas aldeias está ainda mais difícil. Os igarapés secaram e muitos parentes enfrentam problemas de saúde, como diarreia. Enquanto outros povos têm acesso a água potável e postos de saúde, nós ainda lutamos para garantir o básico para nosso povo.
Os Kulina deveriam ser o maior povo do Vale do Javari, mas perdemos muitos dos nossos anciãos, restando apenas Raimundo, irmão de Cacau, que segue lutando pela preservação da nossa língua e cultura. Temos receio de trazer nossa cultura para a cidade, pois tememos que os não-indígenas a apropriem. Nossa medicina tradicional, como o veneno de sapo, é reservada para ser usada na aldeia, longe dos olhares curiosos dos nawa.
Mesmo enfrentando um passado de violência, guerras com outros povos e constantes invasões, seguimos em frente. Nós, povo Kulina Pano, resistimos aos desafios históricos e nos fortalecemos com a sabedoria de nossos anciões e o espírito coletivo que une nossa gente.