Day: novembro 25, 2020

‘Fui obrigado a entrar em terra indígena com um missionário’, diz servidor da Funai

Biólogo relata os conflitos com a ministra Damares e denuncia a ação de evangélicos para apagar tradições ancestrais; investida de religiosos contra isolados se intensificou com nomeações no governo Bolsonaro MERLINO, Tatiana. ‘Fui obrigado a entrar em terra indígena com um missionário’, diz servidor da Funai. Bocado. Disponível em: Link. Acesso feito em: 25/11/2020. A terra indígena onde vivem os Suruwahá, no sul do Amazonas, é um dos alvo das investidas de missionários evangélicos (Foto: Daniel Cangussu-FPE Madeira Purus/Funai) Localizar, proteger e monitorar povos indígenas isolados e de recente contato no sul do Amazonas era a principal tarefa do biólogo Daniel Cangussu, que entre 2010 e 2019 foi coordenador da Frente de Proteção Etnoambiental (FPE) Madeira Purus da Funai. Nos dois últimos anos em que ficou cargo, porém, ele passou a receber pressões para ir na contramão da sua função e organizar expedições de missionários evangélicos a um território indígena onde não deveriam entrar. Cangussu trabalhava junto ao povo de recente contato Suruwahá e em ações de localização dos isolados do Hi-Merimã e de todos os demais isolados não identificados da região. Embora avalie que a Funai tivesse uma vigilância eficiente, o monitoramento do território Hi-Merimã sempre foi um desafio, porque a população é grande e se movimenta por uma área extensa. “E no entorno há muitos missionários que querem evangelizar os isolados”, conta. “Nós tínhamos um controle grande da saúde dos funcionários quando atuávamos nesses territórios. Mas essa não é uma preocupação dos missionários”, critica. “Por isso, quando me perguntam quais as principais pressões territoriais para os isolados, respondo que não são os madeireiros, os garimpeiros e os povos do entorno. São os missionáios.” Em 2018, por exemplo, ele expulsou o missionário Steve Campbell, ligado a igreja americana Greene Baptist, que havia entrado ilegalmente na terra Hi-Merimã. “Ele se sentiu confiante com a nova conjuntura [eleição do presidente Jair Bolsonaro] para fazer essa expedição. “Foram instaurados um processo de acompanhamento do Ministério Público Federal e um processo administrativo interno da Funai.”   Resistência e imposição O servidor da Funai conta, no entanto, que o momento de maior tensão da sua vida profissional ocorreu um mês após Jair Bolsonaro vencer as eleições presidenciais, em outubro de 2018. Cangussu foi designado pelo presidente da Funai a organizar uma visita à terra indígena dos Suruwahá. O objetivo era que a comunidade recebesse Muwaji Suruwahá, indígena que havia sido retirada de lá pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) anos antes com o intuito de levar a filha para Brasília, onde teria tratamento de saúde. Muwaji e sua filha nunca mais voltaram. A incursão, no entanto, não seria feita só por ela – já convertida em evangélica e integrante da Jovens com uma Missão (Jocum) – mas também por seus filhos e na companhia de um missionário da Jocum, Darci Azevedo Cunha. Anos antes, Azevedo havia morado na mesma terra indígena, antes de ser retirado por decisão do Ministério Público. A solicitação para a visita havia sido feita pelo então senador e pastor evangélico Magno Malta, que à época tinha como assessora a hoje ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves. “Fui obrigado pelo presidente da Funai, por meio do assédio de Magno e Damares, a entrar na terra indígena com um missionário”, conta o biólogo. A ministra é fundadora da ONG Atini, investigada pelo Ministério Público Federal por tráfico e sequestro de crianças. Cangussu conta que mostrou resistência à ideia. “Disse que estava havia quase 10 anos fazendo o contrário [impedir a entrada de missionários]. E o que me disseram foi que, se eu não quisesse, iriam providenciar alguém para fazer.” A visita durou uma semana e foi “tensa”, ele diz. Por falar a língua dos Suruwahá, o missionário tinha conversas isoladamente com alguns deles. “Foi ruim ter que usar a logística da Funai em prol dos missionários. Foi uma espécie de prenúncio do que iria acontecer depois”, observa, referindo-se à nomeação de Ricardo Lopes Dias, ex-missionário evangélico, para coordenador na Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC) da Funai.   Casa de conversão em Brasília Muwaji vive hoje em uma casa em Brasília com dois filhos, onde também moram outros indígenas retirados pela Sesai de outras terras e que nunca mais retornaram aos seus lares de origem. “Nessa casa moram indígenas formados para serem pastores”, explica o servidor. “A estratégia deles é: se não conseguem entrar nas terras com os missionários, entram com indígenas que se converteram, já que não se pode impedir a entrada de indígenas nas aldeias.” A reportagem entrou em contato com Funai, Sesai, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e com o ex-senador Magno Malta. Nem o pastor nem os órgãos governamentais se pronunciaram. As ações dos missionários entre os indígenas isolados e povos de recente contato se intensificaram com nomeações no governo Bolsonaro (Foto: Daniel Cangussu-FPE Madeira Purus/Funai) Cangussu afirma que teve conflitos com Damares e missionários durante nove anos, por conta das investidas em áreas de índios isolados ou de recente contato. Tanto que pouco após a expedição, no começo de 2019, ele pediu para ser transferido. Hoje, ele é é chefe da Coordenação Técnica Local da FUNAI em Teófilo Otoni, em Minas Gerais. “Meu presidente [da Funai] é um delegado da Polícia Federal que nomeou um missionário para assumir a Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato. Nosso chefe é nosso principal rival”, define. “É muito triste, coloca a gente na lama em todos os sentidos. Se meia dúzia de índios for evangelizada, para eles valeu o preço, caso muitos morram.” O biólogo faz questão de ressaltar que esses não são casos isolados. Nos seus nove anos na Frente de Proteção Etnoambiental, ele presenciou e teve conhecimento de outras ações que colocavam em risco povos indígenas e tradições ancestrais. Caso de um importante ritual de passagem das indígenas Banawá, que vivem no sul do Amazonas — um momento importante para as jovens, de orgulho, quando deixam de ser meninas para virarem mulheres.

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